Daniel Arruda Nascimento Professor de Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense e Diretor do Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé - Divulgação

O que podemos esperar para depois desse longo período de isolamento social?

Há alguns dias o professor Francisco Esteves publicou aqui no jornal um estimulante texto com o título “Pandemia do coronavírus impõe à sociedade uma guinada rumo à sustentabilidade”.

De acordo com ele, o confinamento dos cidadãos e a maneira abrupta e repentina segundo a qual tiveram que alterar seus padrões de vida pessoal e de relacionamentos acabou criando involuntariamente uma oportunidade única para que todos pudessem refletir sobre o modelo de vida que antes da pandemia prevalecia.

“A necessidade da sociedade em reorientar seus padrões de produção, consumo e de uso racional dos recursos naturais” terá como consequência o estabelecimento de “um modelo que garanta mais equilíbrio do homem com o ambiente, calçado em princípios da sustentabilidade”. Gostaria de fazer algum coro ao experiente professor. Provocado por muitos amigos a escrever algo sobre os efeitos da prolongada quarentena e sobre o mundo humano pós-Covid-19, resisti o máximo que pude.

Fui vencido apenas quando observei que outra professora experiente, que considero uma campeã do otimismo, se rendeu ao discurso de que “a humanidade não deu certo”. Uma eletricidade interior acendeu um sinal de alerta. Notei que a frase está cada vez mais presente nas pessoas ao redor, isto é, virtualmente ao redor. A frase estava também presente na carta de despedida do ator Flávio Migliaccio, que se suicidou recentemente aos oitenta e cinco anos.

Acontece de encontrarmos pessoas que mal podemos compreender, de sofrermos os impactos da concorrência de individualidades egoicas e de políticas devastadoras. Quando somos testados pela maldade do mundo, podemos nos sentir desamparados e sem nenhuma esperança na humanidade. Esclareço que a breve reflexão que aqui tem espaço não tem a intenção de remover esse terreno pantanoso, mas de incentivar o pensamento sobre o mundo humano pós-Covid-19.

Os professores de filosofia, especialmente aqueles que trabalham nas universidades, estão acostumados a escrever apenas para os seus próprios colegas, para alguns grupos de pesquisa bem específicos. São poucos os que leem o que eles escrevem, por razões das circunstâncias, ou seja, do consciente isolamento das universidades diante do mundo comum dos homens, desde tempos remotos. A raiz do problema pode ser encontrada em Platão, segundo a filósofa alemã Hannah Arendt, perseguida pelo regime que ceifou muitas vidas no início do século vinte.

Quando o filósofo grego descreveu a conhecida Alegoria da Caverna,definiu “a esfera dos assuntos humanos, tudo aquilo que pertence ao convívio de homens em um mundo comum, em termos de trevas, confusão e ilusão, que aqueles que aspirassem ao ser verdadeiro deveriam repudiar e abandonar, caso quisessem descobrir o céu límpido das ideias eternas”. Assim sendo, logo nas origens da tradição do pensamento que denominamos de filosofia, ficou recomendado aos pensadores e acadêmicos em geral que, se eles quisessem enxergar com clareza e profundidade, deveriam sair das cidades (espiritualmente, pelo menos), afastando-se dos problemas da vida cotidiana que afligem os homens comuns. Não é à toa que as universidades públicas, e as ciências humanas em geral, têm tanta dificuldade para demonstrar a sua relevância para a sociedade.

Durante esse período de isolamento social, entretanto, não foram poucos os filósofos que se debruçaram sobre as questões que surgiam, as incertezas sobre o mundo que virá após a catástrofe real do coronavírus que atualmente nos assola (com posições divergentes, naturalmente). O filósofo esloveno Slavoj Žižek defende que o colapso do nosso sistema econômico predatório é inevitável e pondera que “talvez, outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global”. O filósofo sul-coreano radicado na capital alemã Byung-ChulHan acredita que o mundo posterior ao coronavírus será sitiado por um capitalismo de controle e vigilância ainda mais pujante, em consonância com a universalização de um avançado regime policial digital, que o isolamento dos indivíduos em suas casas “não gera nenhum sentimento coletivo forte”. Mais do que fazer as suas apostas ou arriscar prever o futuro, o leitor pode escolher em que ordem de ideias deseja se engajar.

Fora da filosofia, mas ainda adjacente ao campo especulativo que lhe é próprio, chegou até nós uma notícia publicada em jornal chileno acerca de um manifesto assinado por acadêmicos holandeses que experimenta sugerir passos para outra economia, que supere o tipo focado no crescimento do PIB, para diferenciar setores que podem crescer (tais como setores públicos críticos, energia limpa, educação, saúde) de outros que devem decrescer (petróleo e gás, mineração, publicidade).Uma economia baseada na redistribuição, com renda básica universal, com serviços públicos qualificados e acessíveis, com redução de horas de trabalho.Vemos com entusiasmo que há boa gente pensando em alternativas bem concretas, são algumas pistas que não terei oportunidade de discutir aqui individualmente. O jurista e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos está convencido de que “só com uma nova articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios será possível começar a pensar numa sociedade em que humanidade assuma uma posição mais humilde no planeta que habita”. Por sua vez, o filósofo e linguista norte-americano Noam Chomsky salienta que “enquanto a pandemia do COVID-19 revira a ordem política e econômica global, dois futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro, as sociedades que enfrentam o tributo imposto pelo vírus podem entrar em colapso no autoritarismo. Mas no outro extremo do espectro, temos a possibilidade de aprender as lições com esse desastre”. Novamente estamos entre alternativas a escolher.

O que virá no mundo pós-Covid-19? Que mundo humano será esse? Continuaremos como se nada houvesse acontecido, lamentando apenas os nossos milhares de mortos, ou a sobrevivência da quarentena resultará em uma humanidade transformada ou disposta a recomeçar?Bom, se o leitor me acompanhou até aqui, devo confessar que sou um comunista, ainda que um comunista cético. Desejo a redução das desigualdades sociais e a extinção das diferenças de classes. Desejo a coletivização dos meios de produção e das propriedades, bem como o fim da exploração do trabalhador e da nociva distinção entre trabalho intelectual e manual. Mas não precisamos ir tão adiante. Não pretendo assustar a ninguém, nem interromper o diálogo.Em um mundo pós-Covid-19, já teríamos um grande ganho se fossemos capazes de consumir menos para produzir menos para explorar menos.

Como adepto da filosofia do subconsumo, acredito que colocar a nossa felicidade no consumo é uma extrema infelicidade. Há inúmeros benefícios em se investir em um padrão menor de consumo, tanto para aquele que consome quanto para a comunidade, tanto para a sobrevivência do planeta quanto para a sobrevivência daquele terá finalmente direito a uma parcela dos recursos que produzimos. O filósofo da fraternidade universal Francisco de Assis mostrou com o seu exemplo, mais do que com palavras, que apenas se desatando das bugigangas que carregamos podemos ser mulheres e homens livres. A liberdade em um sistema de propriedades é uma enganação. Um dos seus biógrafos conta que o grupo formado pelos seus primeiros companheiros não tinha nenhuma posse e por isso viviam sem medo de perder coisa alguma.

Do ponto de vista político, estamos vendo como a crise epidemiológica que não respeita fronteiras encontra Estados nacionais que teimam em lidar com o problema na matriz do domínio territorial e populacional, o que é uma contradição que um dia ainda terá que ser enfrentada com seriedade. Ao mesmo tempo, vemos que as soluções encontradas por Estados liberais e comunistas passam por medidas semelhantes, esgarçando o mito da não-intervenção estatal na economia e escancarando a obrigatoriedade de se distribuir alguma renda.Citando mais uma vez Slavoj Žižek, que parece estar profundamente molestado pela situação que descortinamos, a “ideia de comunismo não é o sonho de um intelectual: estamos descobrindo na nossa própria pele por que certas medidas devem ser tomadas no interesse geral. Não subestimemos o impulso que o vírus está dando a novos sistemas de solidariedade em nível local e global”. E ainda: “nem todo mundo que está em casa passa seu tempo apenas assistindo filmes estúpidos. Todos estão se fazendo perguntas básicas sobre nossa vida cotidiana, questões que em outros momentos definiríamos de metafísicas. Muitos estão usando esse tempo para refletir. E para escolher. É verdade, somos mais isolados, mas também mais dependentes uns dos outros. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade por não nos aproximarmos. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma mudança profunda de comportamento que sobreviverá à crise”.

Para termos um mundo novo é preciso considerar com todo o cuidado a proposta de solidariedade. Ser solidário significater a coragem de aceitar ter menos para que todos tenham mais.O isolamento social pode nos aproximar. Não são poucos os relatos que escutamos de amigos que aprenderam com o choque da quarentena. Criamos bons hábitos, dividimos o nosso dia para as coisas mais importantes, limpamos e arrumamos a casa, cozinhamos mais, comemos melhor, gastamos mais tempo com a nossa família, nos comunicamos remotamente com amigos que não víamos há tempos, escutamos com maior interesse, lemos vagarosamente, cuidamos com maior zelo da nossa saúde e dos que nos rodeiam, até experimentamos um espírito natalino fora de época. Essa quarentena nos aproximou da experiência dos povos originários, que cuidam dos filhos, da comida e da casa pessoalmente, enquanto o homem branco paga a alguém para fazê-lo. Se não cultivamos a terra e produzimos o próprio alimento, ou o caçamos na floresta, como eles o fazem, isso se deve ao nosso processo de urbanização sem retorno que nos confinou em cubículos emparedados de concreto. Felizmente, ainda temos as janelas.

Sei que muitos descontentes desejam uma enorme transformação de teor ético na humanidade (se bem que nem sempre isso implique na iniciativa de dar o primeiro passo). As razões de ordem moral podem carregar contradições insanáveis, a começar pela demarcação da moralidade ou dos valores que devem predominar. Alguns esperam até que a nossa política deixe de ser o lugar da falsidade e da mentira para se tornar o lugar ético por excelência, o lugar da boa conduta. Antes disso, considero que o mais relevante é garantir uma transformação de teor econômico, a escolha de outro modelo de economia para o mundo humano pós-Covid-19. Mudanças nas condições materiais de vida devem ser uma escola para a criação de uma comunidade humana que funcione de outro modo. No frigir dos ovos, pode ser que seja essa a fonte primeira para a renovação da humanidade: a alteração do nosso modo de lidar com as coisas do mundo, objetos, bens, terra, recursos naturais. Essa alteração pode dar origem a uma nova experiência de comunidade. A vida comunitária, por sua vez, pode alterar o coração humano, ela traz consigo as condições para intuir princípios e valores. A experiência do subconsumo e das trocas comunitárias é que serão pedagógicas para a transformação da morada ética do homem contemporâneo.

Daniel Arruda Nascimento
Professor de Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense e Diretor do Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé


Fontes citadas
O DEBATE, edição de 18 a 20 de abril de 2020, p. 07.
ARENDT, H. Entre o passado e futuro, tradução de Mauro W. Barbosa, São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 43.
OUTRASPALAVRAS, 03/03/2020. Disponível em https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/zizek-ve-o-poder-subversivo-do-coronavirus/.
EL PAÍS, 20/03/2020. Disponível em https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html?ssm=FB_BR_CM.
EL CLARÍN DE CHILE, 23/04/2020. Disponível em https://www.elclarin.cl/2020/04/23/holandeses-avanzan-en-el-escenario-pospandemia-y-proponen-un-modelo-economico-basado-en-el-decrecimiento/?fbclid=IwAR0NhdleAC8maumDWY0ZlOh02kT9SZR30SoVMcuKnmbLEvvZDFo9V39FFB8.
SANTOS, B. S. A cruel pedagogia do vírus, Coimbra: Almedina, 2020, p. 31.
CARTA MAIOR, 22/03/2020. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Nao-podemos-deixar-o-COVID19-nos-levar-ao-autoritarismo/6/46871.
NASCIMENTO, D. A. Elogio da pobreza e crítica do capitalismo como religião. In: MACIEL, E.; CORRÊA, S.; ANDREAZZA, T. (Orgs.) Política Prática, Macapá: UNIFAP, 2020.
TOMÁS DE CELANO. Escritos e biografias de São Francisco de Assis, crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano, tradução de José Carlos Pedroso, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 207.
INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 08/04/2020. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597903-vejo-um-novo-comunismo-distante-do-comunismo-historico-brotar-do-virus-entrevista-com-slavoj-zizek?fbclid=IwAR0jqm7-M22WmZrZDQxzchppB63H43pTU45HItRSjJuisSYFKAG3Quxphd0